sábado, março 11, 2006

Pra quem gosta de verde

Pra quem gosta de verde, trechinho de Verdura, de Paulo Leminski (1944-1989):


De repente me lembro do verde
A cor verde a mais verde que existe
A cor mais alegre, a cor mais triste
O verde que vestes, o verde que vestiste
No dia em que te vi
No dia em que me viste



Pra quem tem Outras Palavras, pode ouvir essas palavras

terça-feira, março 07, 2006

“Bem-vindo ao portal oficial da Igreja Adventista do
Sétimo Dia na América do Sul. Uma comunidade cristã
preparando-se para o retorno de Jesus Cristo”
Inscrição que abre o site daquela igreja

CÉU ESCURO


Da primeira a oitava série do primeiro grau, estudei, aqui em Joinville, em colégio adventista. Fui uma criança como qualquer outra. Tive bons momentos, fazia amizades com facilidade, era um dos bons corredores da turma e as notas me permitiram que nunca reprovasse. Da quinta série em diante, matemática e outras disciplinas que não lembro quais, prendiam-me naqueles exames extras, que se faz para recuperar notas durante o período em que os demais já estão curtindo as férias, mas no fim eu sempre passava. Só me incomodavam mesmo os dias de chuva forte, porque tinha, na maioria das vezes, que ir do colégio a pé para casa. Mentira, a caminhada na chuva não era a principal preocupação.

Os Adventistas do Sétimo Dia têm a Bíblia como fonte de suas crenças fundamentais*. O nome da religião é uma menção direta à principal crença, a saber, a “promessa de Jesus ‘Virei outra vez’”. Advento quer dizer vinda, chegada; o que os fiéis aguardam é a segunda vinda de Cristo à Terra, data em que teremos chance de retomar nossa natureza original e seguir para o “reino eterno”, pois “quando nossos primeiros pais [Adão e Eva lá no Éden] desobedeceram a Deus, negaram sua dependência dEle e caíram de sua elevada posição abaixo de Deus. A imagem de Deus, neles, foi desfigurada, e tornaram-se sujeitos à morte. Seus descendentes [nós] partilham dessa natureza caída e de suas conseqüências”. O período pelo qual estamos passando, desde a queda, é considerado pelos adventistas como um “grande conflito entre Cristo e Satanás”.
Baseados em interpretações das Sagradas Escrituras, os adventistas se auto-denominaram “remanescentes”, para eles, isto significa ser o único grupo que permaneceu fiel à palavra divina. As demais religiões, como a católica, por exemplo, desviaram-se dos propósitos verdadeiros e estão condenadas ao “fogo de Deus”, junto dos demais ímpios e o próprio Satanás, isso caso não se redimam até a época da segunda vinda (no site da igreja adventista, além de investidas diretas contra o catolicismo, há também afrontas nada sutis aos seguidores do espiritismo).

Hoje, os adventistas apenas pregam o retorno de Cristo, no passado, quando ainda estavam se organizando, ocorreu algo mais curioso. Como na música do baiano Assis Valente, os adventistas mais de uma vez “anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar”, entretanto, para sua decepção, “o tal do mundo não se acabou”. Isso mesmo, a igreja adventista se concentrou em estudar e calcular a exata data da segunda vida. Segundo Martin Gardner (em O Umbigo de Adão), jornalista norte-americano, 1843 foi o primeiro ano proposto para a volta de Cristo. Porque nada aconteceu, propuseram 1844, depois 1845, depois 1851.

Voltando à minha infância no colégio adventista, com tantas aulas de religião, orações, cultos (todas as sextas-feiras!), hinos de louvor e conselhos dos pastores e professores, acabei adotando alguns aspectos da doutrina. O que me recordo com mais precisão é da relação que eu estabeleci entre o que diziam as Sagradas Escrituras sobre o dia decisivo e os temporais que insistiam em desabar bem quando eu estava no colégio. Para o dia final, as teses adventistas programavam o seguinte: Cristo retornaria, faria uma espécie de triagem, ressuscitando todos os mortos remidos e deixando os mortos ímpios a sete palmos. Os fiéis vivos até o dia da volta mais os recém-ressuscitados iriam com Cristo para o céu, a “Nova Jerusalém”, e permaneceriam lá durante mil anos (a igreja chama este período de “Milênio”). Quanto aos vivos ímpios, seriam destruídos na Terra – as imagens explicativas do site da igreja lembram os filmes americanos sobre catástrofes, com gente de olhos arregalados, prédios em chamas, estrelas gigantes caindo do céu. Tem mais: Satanás e seus anjos maus ficariam aprisionados na Terra durante o Milênio, tempo dado por Deus para que refletisse sobre os males todos que provocou. Ao término do Milênio, os ímpios todos ressuscitariam e junto com Satanás receberiam a condenação final, a morte eterna (ressuscitar para morrer de novo? Isso mesmo). Tudo isso passava pela minha cabeça quando via a primeira nuvem escura ou escutava roncos de trovoada. Uma passagem bíblica invariavelmente me surgia nessas horas, era Mateus 24:29, que diz: “o sol escurecerá, a lua não terá claridade, cairão do céu as estrelas e as potências dos céus serão abaladas”. E eu dizia comigo, repetidas vezes, “o sol escurecerá”, “o sol escurecerá” e olhava pela janela a tormenta chegando. Meu medo era, obviamente, de não estar em dia com as obrigações de fiel e ser lacerado por sei-lá-o-quê vindo das alturas. Eu pensava também em minha família, saberiam eles que o dia tinha chegado, teriam pedido perdão pelos pecados?

Não bastasse as indagações de cunho moral que eu me fazia, minhas idéias se punham ainda a engendrar uma imagem bem nítida do final. Assustado, eu recuperava todos os discursos e ilustrações sobre a segunda vinda que os adventistas me haviam ensinado. O resultado da fabulação, além do cenário catastrófico (gente aterrorizada, chamas, chuva de estrelas, etc.), era de que Cristo viria tal como Papai Noel, numa espécie de trenó - trocando as renas por anjos, claro, e a roupa e gorro vermelhos por vestes branquíssimas, evidentemente.

Quando cessavam os trovões e a chuvarada, eu ainda desconfiava, pode ser que Ele resolva aparecer de surpresa, pegar uns desprevenidos. Mas nessas horas, eu já tinha feito todas as orações, tinha pedido perdão por todos meus pecados e prometido jamais os cometer novamente.
Diferente da época em que estudava no colégio adventista, anos oitenta/noventa, hoje vejo graça nisso tudo; bem provável porque, como disse Aristóteles (em Arte Retórica), mesmo dos momentos de desprazer é bom recordar, pois “é agradável sentir que já estamos livres do mal”.

*As informações sobre a igreja estão no site www.adventista.org.br

domingo, março 05, 2006

Também te amo


Tinha me decidido, pegaria umas roupas e me mandaria pra algum lugar tranqüilo. Liguei pra minha mulher avisando, só este final de semana, domingo, segunda, volto, também te amo, mesmo. Joinville estava fervendo, até o trevo de Jaraguá tomei sol na cara, uma nuvem muito densa cobriu tudo depois. Cantarolei no volante, sozinho e junto do rádio, do cd, e ao passar por Florianópolis, pensei em ficar por lá mesmo, em Naufragados, deitado na areia o dia todo. Passou a placa de entrada, passou o viaduto, não sei por que, acabei seguindo. O tanque reclamava gasolina, aproveitei a parada pra um lanche. Uma senhora muito gorda me atendeu, as tetas pendendo numa regata úmida, um buço de suor. Como não houvesse suco natural, pedi água, água com gás, por favor. Na mesa havia várias inscrições de caneta e de coisa cortante, nomes de pessoas, palavrões, números de telefone, por um instante me imaginei postando alguma mensagem ali, ligue para mim, meu número é tal, a graça não estava no que se escrevia, mas na situação. A senhora gorda trouxe a água e lhe perguntei quanto faltava pra chegar em Tubarão. Uma meia hora, quarenta minutos. Eu não estava certo se queria ir naquela cidade, o que a senhora acha de eu ir pra Tubarão?, devia ter perguntado, porque o que eu menos queria era ter que decidir algo, acho que sim, o senhor deve ir lá, sim, ela diria, quem pode saber. Queria sim perambular nas dunas de Jaguaruna, o vento empoeirado açoitando as pernas, e, talvez, dar uma passada na Guarda, como estará aquilo? A senhora gorda vem em minha direção e pergunta se está tudo bem, só então noto que o copo está estilhaçado, a água toda no chão e sobre minhas calças. Peço desculpas, acrescento cinco reais à conta e tomo a estrada. No celular, uma mensagem, boa viagem, se cuida, te amo muito, beijo. Cato umas palavras pra responder à Soninha, minha filha, também te amo, oi, beijos, volto logo, gostou do presente?, não sabia direito o que escrever e acabei mandando aquilo desconexo. Soninha, a essa hora, devia estar na tv, comendo.

Pego Tubarão anoitecida, na praça com a velha pista de skate a foto que tiro não dá pra ver nada. Vem vindo uns garotos, me pedem fogo, sentam numa extremidade da pista, pergunto se posso sentar ali com eles e eles me oferecem uma bebida. Tatuado no ombro de um deles Leila, é minha namorada, diz. Tive um pequeno romance com uma Leila, conto aos garotos, quando ainda estava no primário, nem sequer nos beijamos, apenas ficávamos rindo. O garoto do ombro tatuado riu, depois gargalhou, disse que isso de nem pegar na mão parecia coisa de novela das seis e eu concordei com ele e ri também. Disse aos garotos que ia até as Termas da Guarda, que eu iria lá ver como estava o local que freqüentei durante a infância. Um deles me pediu dinheiro, deixei uns trocados. Antes de chegar nas Termas, tive que parar pra mijar, estava apertado desde lá da pista de skate. Mijei num muro com muitas plantas, atrás uma casinha branca e azul de madeira, pela janela eu via que começava o Super Cine e via um rosto fino de mulher muito atento à tela. Quando abri a porta do carro, vi o rosto fino saindo da janela, cabelos longos e olhar inquisidor, pensei se devia falar alguma coisa.

Com mais uns quilômetros, chego. Pouco havia mudado nas Termas, ainda tinha os sapos e mato cobrindo os morros, uma construção ou outra nova, um e outro jardim novo, cheiro de mato. Parei o carro no portão, lá dentro, dez anos de mim, um parque, piscinas, play-ground, quadras de esportes, muita grama, um quiosque onde tomávamos sorvete e refrigerante. Não podia dizer se nos anos que eu vinha pra este lugar tinha esse portão. Pus o carro debaixo de uma árvore, durmo aqui mesmo, nada de ir pro hotel. Fiquei olhando o portão fechado, não demorou muito resolvi entrar, pulei o portão e segui na noite, o chão ainda era feito de umas pedrinhas muito miúdas e escuras, se tirasse os sapatos teria a sensação de quando, por esse mesmo caminho, andava ansioso por chegar na piscina. A ruela ainda tinha o aroma dos eucaliptos, a lagoa cercada, os patinhos deviam estar recolhidos, eu poderia ir lá dormir abraçado beijando um daqueles patos. O quiosque, a piscina, o play-ground, a grama por todo lado, tudo aquilo invadindo minha cabeça, atualizando o filme e faiscando um tipo de prazer. Na entrada do quiosque encostei o nariz, um cheiro adocicado dos sorvetes da região, eu esperava mesmo senti-lo, sentei no degrau da entrada, no vazio me veio uma espécie de soluço provocando uma dor na garganta, corri a mão sobre os olhos enxugando uma lágrima em cada. No celular, escrevi para minha mulher estou em Tubarão, te amo, te amo, cinco beijos, o local você escolhe. Uma gota caiu na tela do aparelho. Fui até a cerca que guardava a piscina, escalei os ferros; agora tinha aquela água toda. Rodei a piscina retangular trazendo nas idéias uma imagem a cada metro, as lutinhas, os saltos, quando quase me afoguei porque esquecera as bóias, o escorregador, as menininhas. Subi ao topo do escorregador, se fumasse, fumaria ali, sentado, olhando aquela água lenta. Na piscina arredondada atravessei a divisória de mármore branco que ditava o espaço de criança e adulto, raso, fundo. Trouxe as fantasias dos mergulhos, eu sempre nalguma missão perigosa, investigando algo no fundo dos oceanos. Tirei a camisa, tirei as calças, os sapatos, samba-canção, atirei-me com estardalhaço, gargalhando debaixo d’água, bolhas subindo lentamente, um silêncio absoluto. Nadei até o ponto mais profundo, não dava pé, e fiquei escorado na borda revirando ondas com os pés. Em seguida, a outra piscina, a retangular, a vinte metros, corri o mais que pude e me atirei; fiquei submerso até quase encher os pulmões de piscina. Exauri-me percorrendo-a de um lado a outro, mal conseguia tirar meu peso da água. Margeando, fui até o escorregador, molhei a descida, subi e depois me larguei. Fiquei no fundo, queria dormir aqui embaixo, disse com a boca bem aberta, borbulhando, me estendendo no azulejo azul-claro e dobrando os braços debaixo da cabeça, como quem dorme no sofá da sala.

Eu desembarcara em Jaguaruna no domingo, o corpo todo molhado do sol. Foi por causa de um problema com o carro que tive de tomar ônibus, não me aborreci. No caminho, conversei com uma mulher muito simpática que sentou ao meu lado. Disse-me que era de Capivari de Baixo e vinha ficar com os filhos. Achei que ela simpatizara ainda mais comigo do que eu com ela, lembrei minha mulher, no tempo que eu tinha e cogitei o que seria se eu beijasse essa mulher, essa mulher aqui do meu lado, também suada, quiçá carente, e que me ri um sorriso muito saudável. Ajudei a mulher a retirar sua bagagem, ela insistiu que tomássemos um caldo de cana com abacaxi numa barraca ali perto, ali, eu repeti sozinho, o ali dela tinha uma sonoridade daqueles lados, ali. Contei-lhe sobre minha pequena aventura na piscina na noite passada e, ao acabarmos o caldo de cana, ela me convidou para almoçar na casa de seus filhos, primeiro recusei. Andamos, não sei quanto, o suficiente pra fazer algumas bolhas nos pés. Contrariando o que eu pensava, a casa não era modesta, tinha dois pisos e muitos cômodos, havia vários carros e uma varanda enorme, com redes, quero uma depois da comida, eu disse à mulher, que não ouviu. Logo na chegada fui apresentado a todos da casa, muita gente, ofereceram-me bebidas, pinga, caipirinha, cervejas e não entendiam por que eu recusava, despistei alegando gastrite. A comida tinha um tempero forte mas saboroso, comemos muito, todos nós. Me ofereci para lavar o louça, todos recusaram, a mulher me mostrou um quarto para me deitar, aceitei, atendendo aos pés e costas cansados. O lençol bem esticado, umas fotos antigas, cama de casal, ventilador de teto. Quase disse que preferia a rede na varanda, mas já era tarde, a cama já estava ali posta, a mulher envolta no lençol soltando os cabelos e pronunciando algo que eu não podia compreender, no beijo o cheiro adocicado daquele sorvete do quiosque da Guarda, minha língua se vestiu na dela a ponto de eu quase sufocar; ardemos ali até o lençol se desfazer e cobrirmos o colchão com uma lâmina de suor. No repouso percebi um corvo no beiral da janela, o corvo bicava um copo com cerveja, parecia degustar o líquido dourado, a sensação que conhecia aquele pássaro. E ele voou pelo teto do quarto, achei que se espatifaria no ventilador e vi que num dos pés tinha algo como um pequeno relógio. Apontei para o alto querendo mostrar à mulher o pequeno relógio, mas ela já não estava comigo. Quando levantei estava embebido no suor, quem sabe estivesse mesmo febril. Fui até a cozinha pegar água e avisar que estava na hora de partir; os que estavam lá confirmavam o calor que fazia. A mulher me levou até a frente da casa, as dunas ficam aqui perto, ande até o boteco todo verde e dobre a direita, ela disse. De fato, a areiada estava próxima. O dono do boteco verde perguntou-me de onde eu era e se iria subir as dunas logo mais. Respondi que estava ansioso pra subir a duna mais alta e depois me banhar na lagoa no que ele advertiu que o sol não contribuiria com minha empreitada, e completou dizendo que eu tomasse uma gelada e esperasse pelo final da tarde. Agradeci e pedi uma água mineral, com gás, por favor. Com os sapatos na areia, medi o que estava fazendo e quase desisti. O vento começava a soprar areia contra meu rosto, tirei a camisa fazendo dela uma máscara. Do topo da primeira duna que conquistei pude comparar as alturas e saber qual das montanhas seria meu alvo. O vento agora jateava poeira nas costas mas num grau tolerável. O relógio marcava quinze para as quatro, devia ter esperado, tomado uma gelada como dizia o dono do boteco verde. A água que eu tinha já amornara, capaz de ter diarréia se bebê-la, então joguei-a sobre o dorso e continuei subindo, restavam apenas alguns metros. Toca o celular, porque estou ofegante não atendo, apenas olho quem, minha mulher. No alto, sento, os pés soterrados, a poeira amenizara. Não penso em nada, todo meu corpo precisa se recompor. O celular volta a tocar e me sobe um mal-estar repentino que me faz recostar na montanha. Desligo o aparelho e penso tenho que falar. Meus olhos se enchem de lágrimas, afundo as duas mãos na terra, meu rosto se contorce e vem um choro, o choro que não vinha desde não sei que época, obrigatório, só meu. Numa fração de tempo, pude ver a tristeza, senti-a me tocando, mas ela não se deixou nomear, um objeto sem nome, qualidade pura. Escuto umas vozes e tento localizar de onde vem, estão distantes ainda, com as mãos areiadas cubro o rosto, e desço a duna, lépido.

Tem uma família na lagoa ao pé das dunas, duas meninas filhas, muito bonitas as duas. A família estranha que eu esteja de roupa na água, aceno dizendo que não trouxe shorts de banho, depois disso, eles parecem se aquietar comigo. Fico na beira, os sapatos e meias pra secar numa árvore. Enquanto penduro as coisas, me pega a garganta de novo, um sufoco, eu me abaixo sentando sobre uns arbustos e tenho ânsia de vômito, mas nada. Volto pra beira da lagoa, o mal passou, a família, acho que não me viu, não me notaram, e eu fiquei observando como brincavam jogando água uns nos outros, pra quê não importava, importava que o grupo estivesse fazendo. Divertido?, estavam tão entretidos que não precisavam deste tipo de julgamento, estavam fazendo, eles todos, isso importava. Queria ir jogar água também, molhar todos eles, rir como riam eles, puxar a camiseta de uma, o cabelo do outro, me pendurar nas costas da menor e depois perguntar se eles tinham gostado de mim, o que vocês acham de mim?

Mais um anoitecer vem chegando, a família entra no carro e parte. Não tenho fome, apenas sinto cansaço. Nada por perto, a lagoa tem, costeando deste lado, umas árvores muito altas e do outro uma vegetação como grama. Um pássaro sai de uma das árvores e começa a cruzar a lagoa, ele é rápido, em segundos atravessa toda a extensão e desaparece. Lembro o corvo na casa da mulher, e se eu voltar e pedir pra dormir lá? Dormir lá? Aquilo, esse pensamento, dormir lá?, era sinal de que a razão queria voltar, queria voltar a sensatez, meu corpo estava me dizendo que era hora de acabar com a fantasia, que Tubarão, Jaguaruna deviam ficar no lugar deles, na lembrança. Eu precisava achar um orelhão, o celular tinha pifado por causa do banho na lagoa. Eu iria dizer à minha mulher que pegaria a estrada de volta amanhã, o quanto antes. Perguntaria de Soninha, falaria do problema com o carro, da aventura na piscina, dos garotos, falaria dos garotos na velha pista de skate, talvez contasse que senti tesão por uma mulher de Capivari de Baixo, e o que mais? Eu não sei, não sei o que mais queria contar, talvez nem mesmo pudesse ordenar essas frases que pensei, talvez na hora eu perdesse todas as palavras ou a sintaxe. Perguntei à lagoa o que eu deveria fazer, ela me disse que tirasse a roupa, que a tirasse da letargia dando braçadas sem ordem até a outra margem. Foi o que fiz, olhei a outra margem, meus pés, e mergulhei.

sexta-feira, março 03, 2006

Enquanto estávamos em cima do barco, perguntei à Lila por que tinha decidido me ligar convidando pra praia. Olhou a areia lá na frente, como se pensasse numa boa resposta e esclareceu que precisava sair um pouco da rotina, esquecer o filho, o trabalho e fugir o mais rápido possível do calor. E acrescentou que decidira vir sozinha, mas depois julgou que minha companhia tornaria a pequena fuga mais interessante. Pedi que me falasse do filho, Lila me olhou como que me interrogando do motivo daquela curiosidade e disse que voltássemos pra água antes que torrássemos ali. Concordei e num impulso pueril a empurrei do barco, saltando em seguida. Ao sairmos da água, Lila pediu que a puxasse, ela parecia exausta. Sentamos debaixo do guarda-sol e tive vontade de tomar cerveja. Peguei os trocados que tinha trazido e fui ao bar. Traga cigarros para mim, por favor, pediu Lila, e, espere, me deixe passar um pouco de protetor em ti. Ficamos frente a frente, Lila pingou o protetor em meu nariz e começou a espalhar sobre meu rosto; senti seu hálito limpo, suave, e fitei bem seus olhos, permaneciam serenos, investigando minha derme. Pensei os motivos que fariam Lila me trazer com ela, revi ela despistando com a estória de fugir da rotina. Mais de seis meses tinham passado desde a última vez que nos encontramos, por acaso no shopping, não tínhamos intimidade ou muito pouca, e ela me ligou, me ligou perguntando se eu não queria ir pra praia com ela. No bar, tomei uma latinha de cerveja bem rápido, eu gostava de ver chegando o pequeno entorpecer do álcool, comprei o cigarro de Lila e outra latinha para ela. Ao meu lado havia uma menina, dezoito, vinte anos, surpreendi-me quando, olhando a tanga cor-de-rosa, vi saindo uns pentelhos grandes. Na caminhada de volta ao guarda-sol, fiquei remexendo a tanga cor-de-rosa, nos pentelhos grandes, senti uma leve excitação, olhei o guarda-sol pequenininho lá na frente e uma lágrima começou a brotar, não tinha razão clara. Lila me olhava, eu podia distinguir sua posição, outra lágrima veio. Fiquei feliz por ter aquela sensação indiscernível e que me trouxe as duas lágrimas. Continuei caminhando, agora apreendendo tudo que me cercava: a temperatura da água, aspereza da areia, o vento no rosto, som das ondas, odor do mar, as vozes dissonantes com palavras soltas, o funk do bar. Na frente de Lila, sorri e lhe entreguei a cerveja e o maço de cigarros, deve estar um pouco quente, adverti soltando a latinha.

quarta-feira, março 01, 2006

Comprei ontem, num sebo, uma edição especial da revista Bravo! (dez/05) que traz os cem melhores da cultura em oito anos (teatro, dança, música, exposições, livros, filmes). Não há crítica propriamente, é mais uma sinopse que em alguns casos recorre a elogios. Comprei a revista com o objetivo de ver quem da literatura estava listado lá (do cinema também), uma tentativa de saber se meu ‘gosto’ estava afinado ou não, e, claro, tomar a lista como receituário para futuras apreciações. Ao ler, motivei-me a recuperar um pequeno trecho da obra S/Z, de Roland Barthes.

A crítica e outras discussões sobre arte, que envolvem diretamente a questão do gosto, mostram-se amiúde curiosas pelas formas como se propõem fundamentar a beleza de uma dada obra, seja música, filme, literatura... Embora eu não concorde inteiramente com Barthes, aprecio a capacidade de promover embates da seguinte passagem: “não se pode explicar verdadeiramente [a beleza]: ela diz-se, afirma-se, repete-se em relação a cada parte do corpo, mas não se descreve”. Para a defesa da beleza, os únicos recursos possíveis são a “tautologia” ou a “comparação”, completa Barthes. A saída ‘é porque é’ (ex. meu) ou “um rosto oval, perfeito” é tautológica, volta-se sobre si própria. E quando se diz “bela como uma madona de Rafael” ou “bela como Vênus”, faz-se uma comparação.

Para verificarmos como funciona na prática, tomo trechos da revista Bravo! Sobre Budapeste, está assim: “o mais bem elaborado romance de Chico Buarque não deixa de ser uma fábula faustiana” – uma comparação, portanto. De O Som e a Fúria, William Faulkner, a revista assinala: “este retrato de uma família decadente do sul dos Estados Unidos é uma das obras-chave do século 20. Na nova tradução, Paulo Henriques Britto encontrou soluções magistrais” – aqui (obras-chave/magistrais) temos a tautologia, o adjetivo quer por si só persuadir o leitor, não há demonstração. Sobre Cidade dos Sonhos, de David Lynch, o alicerce também é a comparação: “o filme todo é uma fantasia autoral digna dos filmes de Fellini”. Em tais defesas o argumento primordial é a Arte (com ‘a’ maiúsculo), ou seja, se o romance de Chico Buarque se aproxima da obra faustiana então pode ser considerado um bom romance, o mesmo vale para Cidade dos Sonhos, porque é comparável a Fellini. “Mas, e Vênus? Bela como quem? Como ela própria?”, é o que se questiona Barthes e que podemos transportar para as defesas da Bravo!: e Fellini, belo como quem?