domingo, abril 23, 2006

Beira-mar, sol de inverno. Sentamos na areia, ela dizendo algo sem eu segurar uma letra. Não tínhamos intimidade, mesmo assim peguei sua mão, seus olhos me interrogando o motivo. Talvez eu devesse tirar aquele cílio acomodado no canto de seu lábio. Não fiz. Em vez disso, retive cada traço de seu rosto. Achei que o instante seria próprio para um beijo; num filme, num romance, aconteceria assim. Foi diferente, não havia motivo pra beijo. Não sei se ela queria, mas deve ter pensado também num beijo. Ela ia dizer algo, cheguei a sentir o hálito que me traria sua palavra; mas por minha expressão de inépcia, hesitou, entreabriu a boca, não disse. Fechei meus olhos e deparei com o inefável, um átimo mínimo, amálgama do terrível com belo. Suei e ri, um riso de gozo, um suor de não sei... Passando esse sublime, me deitei na areia, sem soltar a mão dela. A areia envolvendo meu cabelo, a umidade se enroscando em meu pescoço, o riso se transfigurando. Ela quedou arregalada sobre mim. Me vi infantil, desejando seu seio, mas não pedi.

sábado, abril 08, 2006

Enquanto urinava, vi no chão, dentro do boxe, um minúsculo besouro de carapaça champanhe, de um tipo que eu conhecia e chamava meu amiguinho. Fiquei olhando o besouro e urinando no que percebi que ele caminhava sobre alguns fiapinhos. Olhei melhor e notei que havia vários desses fiapos num canto do boxe. O piso tinha detalhes em verde-escuro e por isso demorei a identificar que os fiapos eram na verdade pêlos. Puxei a descarga e me abaixei, esqueci o besouro, me concentrando naqueles pêlos de tom acobreado. Comecei a imaginar o dono dos pêlos. A madrasta fora a última no banheiro, mas seu cabelo era um negro só. Sem pensar no pai ou minha irmã, vi Sandra, a única loira na casa era Sandra.

domingo, abril 02, 2006


Tirando a Roupa

Ontem, 1 de Abril, esqueci de mentir. Sorri para os amigos. Aos cumprimentos, devolvi ‘tudo bem’. Mantive cara e voz de quem toma Maracugina no café da manhã. Mentira mesmo, não teve.

sábado, abril 01, 2006

Circuito de Arte


Semana passada, ouvi um artista catarinense. Um dos pontos interessantes da fala foi a conceituação de ‘circuito’ de arte - espécie de âmbito onde a arte se manifesta. No circuito entrariam o artista, a obra, o público, o colecionador, a academia, instituições de arte-cultura, galerias de arte, museus, crítica especializada, materiais de divulgação, enfim, tudo aquilo que produz diretamente ou fomenta de algum modo o discurso artístico.

A idéia de circuito parece interessante quando está em cheque a maneira como se atribui valor a uma determinada obra ou exposição. A partir - do que - a obra é considerada pelo público como relevante, boa, desagradável, insignificante? Será apenas a partir do contato com a própria obra? Ou deveríamos considerar que no juízo de valor estão implícitos ao menos alguns dos integrantes do circuito (além da obra, claro)? Minha intenção é dizer que em nós, enquanto público, ao apreciarmos uma determinada obra, não estamos recebendo somente informações da obra em si (o quadro, a instalação, a escultura...). Mas no meio das nossas idéias, mesmo que de forma não consciente, estão vários discursos (circuito) que antecipam nosso contato com aquela arte e que podem condicionar nossa percepção. Nesta perspectiva, talvez, poder-se-ia até dizer que estes discursos são integrantes da própria obra: o circuito seria um ‘pedaço’ da obra. Daí que se o discurso for bom, a obra tende a obter bom resultado de público. Do contrário, sendo o discurso um adversário, há possibilidade da obra ser rejeitada e/ou cair no esquecimento. Não é difícil achar na História da Arte exemplos de artistas que tiveram que esperar pelas gerações futuras para ganhar reconhecimento do grande público. Esses artistas e suas obras não tiveram o circuito como aliado. O impressionismo, em seus primeiros tempos, é exemplo.