domingo, março 05, 2006

Também te amo


Tinha me decidido, pegaria umas roupas e me mandaria pra algum lugar tranqüilo. Liguei pra minha mulher avisando, só este final de semana, domingo, segunda, volto, também te amo, mesmo. Joinville estava fervendo, até o trevo de Jaraguá tomei sol na cara, uma nuvem muito densa cobriu tudo depois. Cantarolei no volante, sozinho e junto do rádio, do cd, e ao passar por Florianópolis, pensei em ficar por lá mesmo, em Naufragados, deitado na areia o dia todo. Passou a placa de entrada, passou o viaduto, não sei por que, acabei seguindo. O tanque reclamava gasolina, aproveitei a parada pra um lanche. Uma senhora muito gorda me atendeu, as tetas pendendo numa regata úmida, um buço de suor. Como não houvesse suco natural, pedi água, água com gás, por favor. Na mesa havia várias inscrições de caneta e de coisa cortante, nomes de pessoas, palavrões, números de telefone, por um instante me imaginei postando alguma mensagem ali, ligue para mim, meu número é tal, a graça não estava no que se escrevia, mas na situação. A senhora gorda trouxe a água e lhe perguntei quanto faltava pra chegar em Tubarão. Uma meia hora, quarenta minutos. Eu não estava certo se queria ir naquela cidade, o que a senhora acha de eu ir pra Tubarão?, devia ter perguntado, porque o que eu menos queria era ter que decidir algo, acho que sim, o senhor deve ir lá, sim, ela diria, quem pode saber. Queria sim perambular nas dunas de Jaguaruna, o vento empoeirado açoitando as pernas, e, talvez, dar uma passada na Guarda, como estará aquilo? A senhora gorda vem em minha direção e pergunta se está tudo bem, só então noto que o copo está estilhaçado, a água toda no chão e sobre minhas calças. Peço desculpas, acrescento cinco reais à conta e tomo a estrada. No celular, uma mensagem, boa viagem, se cuida, te amo muito, beijo. Cato umas palavras pra responder à Soninha, minha filha, também te amo, oi, beijos, volto logo, gostou do presente?, não sabia direito o que escrever e acabei mandando aquilo desconexo. Soninha, a essa hora, devia estar na tv, comendo.

Pego Tubarão anoitecida, na praça com a velha pista de skate a foto que tiro não dá pra ver nada. Vem vindo uns garotos, me pedem fogo, sentam numa extremidade da pista, pergunto se posso sentar ali com eles e eles me oferecem uma bebida. Tatuado no ombro de um deles Leila, é minha namorada, diz. Tive um pequeno romance com uma Leila, conto aos garotos, quando ainda estava no primário, nem sequer nos beijamos, apenas ficávamos rindo. O garoto do ombro tatuado riu, depois gargalhou, disse que isso de nem pegar na mão parecia coisa de novela das seis e eu concordei com ele e ri também. Disse aos garotos que ia até as Termas da Guarda, que eu iria lá ver como estava o local que freqüentei durante a infância. Um deles me pediu dinheiro, deixei uns trocados. Antes de chegar nas Termas, tive que parar pra mijar, estava apertado desde lá da pista de skate. Mijei num muro com muitas plantas, atrás uma casinha branca e azul de madeira, pela janela eu via que começava o Super Cine e via um rosto fino de mulher muito atento à tela. Quando abri a porta do carro, vi o rosto fino saindo da janela, cabelos longos e olhar inquisidor, pensei se devia falar alguma coisa.

Com mais uns quilômetros, chego. Pouco havia mudado nas Termas, ainda tinha os sapos e mato cobrindo os morros, uma construção ou outra nova, um e outro jardim novo, cheiro de mato. Parei o carro no portão, lá dentro, dez anos de mim, um parque, piscinas, play-ground, quadras de esportes, muita grama, um quiosque onde tomávamos sorvete e refrigerante. Não podia dizer se nos anos que eu vinha pra este lugar tinha esse portão. Pus o carro debaixo de uma árvore, durmo aqui mesmo, nada de ir pro hotel. Fiquei olhando o portão fechado, não demorou muito resolvi entrar, pulei o portão e segui na noite, o chão ainda era feito de umas pedrinhas muito miúdas e escuras, se tirasse os sapatos teria a sensação de quando, por esse mesmo caminho, andava ansioso por chegar na piscina. A ruela ainda tinha o aroma dos eucaliptos, a lagoa cercada, os patinhos deviam estar recolhidos, eu poderia ir lá dormir abraçado beijando um daqueles patos. O quiosque, a piscina, o play-ground, a grama por todo lado, tudo aquilo invadindo minha cabeça, atualizando o filme e faiscando um tipo de prazer. Na entrada do quiosque encostei o nariz, um cheiro adocicado dos sorvetes da região, eu esperava mesmo senti-lo, sentei no degrau da entrada, no vazio me veio uma espécie de soluço provocando uma dor na garganta, corri a mão sobre os olhos enxugando uma lágrima em cada. No celular, escrevi para minha mulher estou em Tubarão, te amo, te amo, cinco beijos, o local você escolhe. Uma gota caiu na tela do aparelho. Fui até a cerca que guardava a piscina, escalei os ferros; agora tinha aquela água toda. Rodei a piscina retangular trazendo nas idéias uma imagem a cada metro, as lutinhas, os saltos, quando quase me afoguei porque esquecera as bóias, o escorregador, as menininhas. Subi ao topo do escorregador, se fumasse, fumaria ali, sentado, olhando aquela água lenta. Na piscina arredondada atravessei a divisória de mármore branco que ditava o espaço de criança e adulto, raso, fundo. Trouxe as fantasias dos mergulhos, eu sempre nalguma missão perigosa, investigando algo no fundo dos oceanos. Tirei a camisa, tirei as calças, os sapatos, samba-canção, atirei-me com estardalhaço, gargalhando debaixo d’água, bolhas subindo lentamente, um silêncio absoluto. Nadei até o ponto mais profundo, não dava pé, e fiquei escorado na borda revirando ondas com os pés. Em seguida, a outra piscina, a retangular, a vinte metros, corri o mais que pude e me atirei; fiquei submerso até quase encher os pulmões de piscina. Exauri-me percorrendo-a de um lado a outro, mal conseguia tirar meu peso da água. Margeando, fui até o escorregador, molhei a descida, subi e depois me larguei. Fiquei no fundo, queria dormir aqui embaixo, disse com a boca bem aberta, borbulhando, me estendendo no azulejo azul-claro e dobrando os braços debaixo da cabeça, como quem dorme no sofá da sala.

Eu desembarcara em Jaguaruna no domingo, o corpo todo molhado do sol. Foi por causa de um problema com o carro que tive de tomar ônibus, não me aborreci. No caminho, conversei com uma mulher muito simpática que sentou ao meu lado. Disse-me que era de Capivari de Baixo e vinha ficar com os filhos. Achei que ela simpatizara ainda mais comigo do que eu com ela, lembrei minha mulher, no tempo que eu tinha e cogitei o que seria se eu beijasse essa mulher, essa mulher aqui do meu lado, também suada, quiçá carente, e que me ri um sorriso muito saudável. Ajudei a mulher a retirar sua bagagem, ela insistiu que tomássemos um caldo de cana com abacaxi numa barraca ali perto, ali, eu repeti sozinho, o ali dela tinha uma sonoridade daqueles lados, ali. Contei-lhe sobre minha pequena aventura na piscina na noite passada e, ao acabarmos o caldo de cana, ela me convidou para almoçar na casa de seus filhos, primeiro recusei. Andamos, não sei quanto, o suficiente pra fazer algumas bolhas nos pés. Contrariando o que eu pensava, a casa não era modesta, tinha dois pisos e muitos cômodos, havia vários carros e uma varanda enorme, com redes, quero uma depois da comida, eu disse à mulher, que não ouviu. Logo na chegada fui apresentado a todos da casa, muita gente, ofereceram-me bebidas, pinga, caipirinha, cervejas e não entendiam por que eu recusava, despistei alegando gastrite. A comida tinha um tempero forte mas saboroso, comemos muito, todos nós. Me ofereci para lavar o louça, todos recusaram, a mulher me mostrou um quarto para me deitar, aceitei, atendendo aos pés e costas cansados. O lençol bem esticado, umas fotos antigas, cama de casal, ventilador de teto. Quase disse que preferia a rede na varanda, mas já era tarde, a cama já estava ali posta, a mulher envolta no lençol soltando os cabelos e pronunciando algo que eu não podia compreender, no beijo o cheiro adocicado daquele sorvete do quiosque da Guarda, minha língua se vestiu na dela a ponto de eu quase sufocar; ardemos ali até o lençol se desfazer e cobrirmos o colchão com uma lâmina de suor. No repouso percebi um corvo no beiral da janela, o corvo bicava um copo com cerveja, parecia degustar o líquido dourado, a sensação que conhecia aquele pássaro. E ele voou pelo teto do quarto, achei que se espatifaria no ventilador e vi que num dos pés tinha algo como um pequeno relógio. Apontei para o alto querendo mostrar à mulher o pequeno relógio, mas ela já não estava comigo. Quando levantei estava embebido no suor, quem sabe estivesse mesmo febril. Fui até a cozinha pegar água e avisar que estava na hora de partir; os que estavam lá confirmavam o calor que fazia. A mulher me levou até a frente da casa, as dunas ficam aqui perto, ande até o boteco todo verde e dobre a direita, ela disse. De fato, a areiada estava próxima. O dono do boteco verde perguntou-me de onde eu era e se iria subir as dunas logo mais. Respondi que estava ansioso pra subir a duna mais alta e depois me banhar na lagoa no que ele advertiu que o sol não contribuiria com minha empreitada, e completou dizendo que eu tomasse uma gelada e esperasse pelo final da tarde. Agradeci e pedi uma água mineral, com gás, por favor. Com os sapatos na areia, medi o que estava fazendo e quase desisti. O vento começava a soprar areia contra meu rosto, tirei a camisa fazendo dela uma máscara. Do topo da primeira duna que conquistei pude comparar as alturas e saber qual das montanhas seria meu alvo. O vento agora jateava poeira nas costas mas num grau tolerável. O relógio marcava quinze para as quatro, devia ter esperado, tomado uma gelada como dizia o dono do boteco verde. A água que eu tinha já amornara, capaz de ter diarréia se bebê-la, então joguei-a sobre o dorso e continuei subindo, restavam apenas alguns metros. Toca o celular, porque estou ofegante não atendo, apenas olho quem, minha mulher. No alto, sento, os pés soterrados, a poeira amenizara. Não penso em nada, todo meu corpo precisa se recompor. O celular volta a tocar e me sobe um mal-estar repentino que me faz recostar na montanha. Desligo o aparelho e penso tenho que falar. Meus olhos se enchem de lágrimas, afundo as duas mãos na terra, meu rosto se contorce e vem um choro, o choro que não vinha desde não sei que época, obrigatório, só meu. Numa fração de tempo, pude ver a tristeza, senti-a me tocando, mas ela não se deixou nomear, um objeto sem nome, qualidade pura. Escuto umas vozes e tento localizar de onde vem, estão distantes ainda, com as mãos areiadas cubro o rosto, e desço a duna, lépido.

Tem uma família na lagoa ao pé das dunas, duas meninas filhas, muito bonitas as duas. A família estranha que eu esteja de roupa na água, aceno dizendo que não trouxe shorts de banho, depois disso, eles parecem se aquietar comigo. Fico na beira, os sapatos e meias pra secar numa árvore. Enquanto penduro as coisas, me pega a garganta de novo, um sufoco, eu me abaixo sentando sobre uns arbustos e tenho ânsia de vômito, mas nada. Volto pra beira da lagoa, o mal passou, a família, acho que não me viu, não me notaram, e eu fiquei observando como brincavam jogando água uns nos outros, pra quê não importava, importava que o grupo estivesse fazendo. Divertido?, estavam tão entretidos que não precisavam deste tipo de julgamento, estavam fazendo, eles todos, isso importava. Queria ir jogar água também, molhar todos eles, rir como riam eles, puxar a camiseta de uma, o cabelo do outro, me pendurar nas costas da menor e depois perguntar se eles tinham gostado de mim, o que vocês acham de mim?

Mais um anoitecer vem chegando, a família entra no carro e parte. Não tenho fome, apenas sinto cansaço. Nada por perto, a lagoa tem, costeando deste lado, umas árvores muito altas e do outro uma vegetação como grama. Um pássaro sai de uma das árvores e começa a cruzar a lagoa, ele é rápido, em segundos atravessa toda a extensão e desaparece. Lembro o corvo na casa da mulher, e se eu voltar e pedir pra dormir lá? Dormir lá? Aquilo, esse pensamento, dormir lá?, era sinal de que a razão queria voltar, queria voltar a sensatez, meu corpo estava me dizendo que era hora de acabar com a fantasia, que Tubarão, Jaguaruna deviam ficar no lugar deles, na lembrança. Eu precisava achar um orelhão, o celular tinha pifado por causa do banho na lagoa. Eu iria dizer à minha mulher que pegaria a estrada de volta amanhã, o quanto antes. Perguntaria de Soninha, falaria do problema com o carro, da aventura na piscina, dos garotos, falaria dos garotos na velha pista de skate, talvez contasse que senti tesão por uma mulher de Capivari de Baixo, e o que mais? Eu não sei, não sei o que mais queria contar, talvez nem mesmo pudesse ordenar essas frases que pensei, talvez na hora eu perdesse todas as palavras ou a sintaxe. Perguntei à lagoa o que eu deveria fazer, ela me disse que tirasse a roupa, que a tirasse da letargia dando braçadas sem ordem até a outra margem. Foi o que fiz, olhei a outra margem, meus pés, e mergulhei.

1 Comments:

At segunda-feira, 06 março, 2006, Blogger Ivana said...

A tua forma de escrever me faz viajar, linha por linha... Na água da piscina e nos carinhos sôfregos que deixaram os lençóis molhados... Texto tesão!

 

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